segunda-feira, 21 de maio de 2012

Céu estrelado


“Eu não queria ir, mas agora não posso voltar”.  Foi assim que ele entendeu o que se passara, por esse diálogo em forma de sonho, num sonho, e acordou sobressaltado, alerta o bastante para falar, retirar da dimensão onírica e declarar com suas próprias palavras o que ouvira.  Aos seis anos toda sabedoria é viceral.  A irmã estava dormindo no chão, junto a quem somente ela via.  E ela possuía a certeza do que via.  Dormiu no chão para acompanhar, estar junto, fazer o mesmo.
Dia após dia, tarefas burocráticas vão sendo superadas: documento, números, protocolos . Cada um deve superar a tarefa de prosseguir.  Um age como se tudo fosse uma repartição pública, tão racionalmente quanto se possa, outro aciona uma máquina-do-fim-do-mundo, tão emocionalmente quanto se possa.  Há aquele, e uso o gênero masculino indiscriminadamente para ambos os sexos,  que toca uma tristeza atávica.  Em todos os casos, em qualquer caso, algo pode ser compreendido.  O caminho dos que não partiram deve ser uma ruptura constante com o que nos aliena.  A menina que desceu da cama e foi deitar no chão parece apontar para isso.  Para um, o que aliena é a racionalidade, para outro, sua emotividade, para mais outro, sua tristeza esquecida.  Seja o que for, diante de uma ruptura, de algo que parte, podemos olhar para isso que fica, nem que seja por poucos dias apenas,  aqueles dias de perplexidade antes que a atração atômica junte as partes novamente.
Não precisamos esperar a próxima partida na qual teremos mais uma vez ficado para trás.
Algo partiu.  Algo partiu em nós.  E se a menina não for batizada?  E se os que não se falam passarem a se falar?  E se eu deixar você me ajudar?  E se eu olhar para isso que está partido?  E seu eu olhar através disso?
Escute, Fernando:  ninguém é novo demais para acordar!
Nenhum de nós precisa esperar o próximo vôo.  Por isso te convido a embarcar comigo num vôo sem destino e sem tripulação.  Então nossa partida nunca será percebida.
Por enquanto somos os órfãos do vôo 50834 com destino a Buenos Aires.  O ar está bom e o céu repleto de estrelas.

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