segunda-feira, 21 de maio de 2012

Estamos sempre atrasados


Eu  entendo  meu sobrinho que gostaria de um relógio que girasse ao contrário, só aquele tanto suficiente, uma volta ou duas, aquele tempo que é um tanto que não deveríamos ter dito nem feito,  ou aquele outro tanto, muito mais importante, que deixamos de dizer ou perdemos a oportunidade de fazer.  O relógio de Harry Potter funciona, mas ele nada muda, pois só nos tornamos quem somos no exato momento  em que  isso acontece.  Meu sobrinho ainda não sabia disso quando dava voltas no sentido contrário no brinquedo.  Vi isso em seu coração ansioso, assim como o meu.  Vi, pois assim eu também faria.  De fato ainda o faço.  Sou um viajante do tempo sempre atrasado.  Nunca encontro aqueles com quem poderia compartilhar as mudanças que faço na história.  Minhas viagens no tempo são sempre solitárias.  Aquilo que mudo somente eu vejo e, por fim, sempre retorno tarde demais.
Eu entendo o ritual para os vivos, feito pelos vivos diante da morte que nunca é deles.  Ninguém sabe o que é isso,  isso de morrer, ninguém tem essa experiência.  A experiência dos vivos é sempre de uma outra natureza, como se a natureza não abarcasse a morte mesma.  Por isso o ritual dos vivos, esse ritual de passagem, essa páscoa coletiva e solitára, seja diante do corpo e das flores e dos mantras recitados, seja diante das roupas e perfumes e das frases que brotam do coração. Também faço rituais de passagem diários, na maioria das vezes apenas para me dar conta que mais uma vez estamos sempre atrasados.
Eu entendo a dor que a mente produz diante deste mistério que é desaparecer, se desconectar.  A mente precisa produzir dor, pois é a partir dessa dor que ela determina ações de sobrevivência.  Nós, os sobreviventes, compartilhamos esse olhar de desespero e de lealdade.  Compartilhamos tanta mágoa e, instantaneamente, de uma compaixão inesperada.  Vi isso num abraço comovente,  em olhos líquidos, num andar cambaleante quase acabando, noutro andar resoluto de quem invoca a energia de todo o universo, numa frase de quem desiste, noutra frase, em forma de piada, de quem ainda tem toda uma vida para viver.  Foi assim que me tornei irmão de quem não era, e  como sempre, de novo, estava atrasado para isso, atrasado para lhe dizer qualquer coisa, para fazer qualquer coisa.
Andei entre as ruas estreitas para achar o endereço.  Cheguei primeiro.  Só havia um número antes e outro depois, ambos gravados perfeitamente.  No local mesmo, não havia número gravado, nem placa, nem nada. Mas era ali.  A gravação do número e da placa também estavam atrasados.  O sol estava a pino.  Vi minha irmã deitar as flores, as que lhe eram preferidas e repeti o número em silêncio até não mais poder esquecer.  Respirei fundo e apesar de tudo que eu estava sentindo, o ar estava bom.

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